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PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE MEMES

1.
É sempre Grande Sertão: Veredas, um dos meus romances preferidos, que volta à memória quando penso no uso da linguagem. Como se o Brasil, passado, presente e futuro, estivesse inteiramente ali, esperando apenas o seu cumprimento. O romance fala de tudo, como se sabe, fala de tudo e de dúvidas, porque a dúvida confere a grande humanidade, frágil, precária, que agiganta a personagem.

Em um certo momento, Zé Bebelo chama Riobaldo para animar os jagunços. Riobaldo diz que não é nada, nada, nada mesmo, nadinha de nada, nada... coisinha nenhuma, o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. De nada. De nada... De nada...

Ao ouvir a autodescrição de Riobaldo, Zé Bebelo reage com desconfiança "perturbada", mostra inquietação. Então ri, de modo generoso, e diz ao seu jagunço: "Tu vale o melhor. Tu é o meu homem!..." 

Guimarães Rosa não é apenas um grande narrador, é um profundo conhecedor da linguagem: nesse romance, feito de guerra, morte, amor, dúvidas, traições, a linguagem exerce um papel fundamental, porque não basta contar, mas é preciso estar atento ao modo de contar.

No breve exemplo que menciono, Rosa ilustra o efeito da repetição. A insistência gera dúvida, pode causar a interpretação exatamente oposta àquilo que se afirma. Riobaldo diz que não é nada, Zé Bebelo conclui que ele vale o melhor.

2.
Estou lendo o livro de Gianrico Carofiglio, La Manomissione delle Parole, que salvo engano, não possui tradução em português. O título é difícil de traduzir literalmente, porque a palavra "manomissione" pode significar violação (alteração de uma norma ou padrão) ou libertação (subentendida como libertação dos escravos). Portanto, o título deve ser entendido como "A violação e a libertação das palavras".

Carofiglio dedica uma grande parte da reflexão ao empobrecimento da língua, como fator de empobrecimento da democracia. Não se trata se uma visão pedante, de uma defesa da riqueza da língua como simples elemento de ilustração e erudição, mas de uma percepção aguda de que o empobrecimento da língua determina uma maior dificuldade para exprimir conceitos complexos, para enfrentar problemas, para encontrar soluções baseadas no diálogo. O resultado do empobrecimento da linguagem é o aumento da violência e a submissão dos falantes. Carofiglio chama essa língua empobrecida de língua totalitária, uma língua que tende a ser simples e repetitiva e que abre caminho para o totalitarismo em lugar da democracia, regime do diálogo por excelência. Regimes totalitários valem-se (e valeram-se no passado) desse tipo de recurso para exercer a dominação. Usa frases simples, chamadas, slogans, que à força de repetição e de maximalismos, esvaziam sentidos, mistificam e mitificam fatos.

Quando Carofiglio escreveu o texto ainda não tínhamos cunhado os termos pós-verdade e memes. Mas o conceito está todo ali. Repete-se para convencer, cria-se propositalmente uma mentira com toda a semelhança de verdade para confundir. É o empobrecimento da linguagem a serviço do totalitarismo.

3.
De Guimarães Rosa a Carofiglio, o sentimento de medo atravessa as palavras. O que elas podem fazer, o que podem comportar. Carofiglio responde ao desafio, afirmando que é preciso falar da linguagem, do seu funcionamento, da sua estrutura, para desmontar e dar instrumentos de interpretação em um mundo cada vez mais totalizante. É preciso cultivar a riqueza, não perder o ânimo diante do empobrecimento que se reconhece no discurso político e jornalístico.

4.
Esses dias, dialogando com um amigo sobre a crise política brasileira, voltamos ao tema da seletividade e do seu contrário, ou seja, o repúdio completo à política a que temos tristemente assistido no Brasil.

Ele dizia: "Mas nós não somos contra um partido, somos contra todos".

Essa palavra, "todos", chamou a minha atenção. Lembrei que quando ensino a usar os pronomes indefinidos aviso sempre: "cuidado com eles, um indefinido pode isentar ou implicar o interlocutor".
Quando digo: "todos vocês devem fazer a tarefa", provavelmente ninguém se sente pessoalmente chamado em questão. As pessoas podem pensar: "se eu não fizer, outro irá fazer, não importa". Se eu disser: "Cada um de vocês deve fazer esta tarefa", ninguém pode dizer que não tem a ver com o caso.

Trata-se de sutilezas, mas é extamente de sutilezas que fala Carofiglio. São nesses detalhes da língua que o vírus da mentira se instala, dando ao discurso uma perigosa aparência de relação com a realidade.

5.
Para não dizer que não falei de memes, volto a Guimarães. A linguagem não é apenas manipulável no mau sentido. O mal às vezes sofre o efeito bumerangue, e retorna ao remetente com a mesma intensidade do lance.

De tanto repetirem afirmações que não encontram provas palpáveis na realidade, o vírus rosiano aciona a dúvida, esta frágil virtude da natureza humana. A dúvida nos atormenta constantemente e não dá nenhuma garantia, mas enquanto ela nos incomodar e nos fizer pensar que algo insistentemente dito pode ser apenas um meme ou uma pós-verdade, podemos estar certos de termos os anticorpos adequados para enfrentar a dominação da linguagem totalitária e os riscos do totalitarismo que nos ameaça.

Comentários

  1. Excelente! Quanta coisa boa você junta num só tema, num só artigo. Estilo (cadência, graça, etc. etc.), informação valiosa e um autor grandioso. Parabéns, vou divulgar. Abraços e feliz 2017.

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  2. Obrigada pelo comentário, Claudia. E pela leitura sempre generosa. Um abraço e feliz 2017 para você também!

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