Gosto muito de etimologia, não somente por amor à história, mas também pelas relações que as palavras estabelecem entre si. É um vício, porque uma palavra puxa outra, história puxa história e a gente vai se redescobrindo no labirinto da língua.
Hoje quero falar da família da palavra "coração", por isso usei o título em latim, que significa exatamanete isso: "do fundo do coração". Vamos, então, recuperar alguns sentidos lá do fundo do baú?
Que tal começar com MISERICÓRDIA? A palavra possui a raiz miseri-, que também está presente na palavra "miséria", e que significa suscitar piedade. A isso se soma o elemento -CORDIA, do latim "cor, cordis", ou seja, "coração". Sentir misericórdia é ter piedade com o coração.
Para os latinos, o coração era o centro das qualidades humanas. Por isso, a CORAGEM também vem do coração. A CONCÓRDIA e a DISCÓRDIA são a harmonia ou a desarmonia mediadas pelo coração, por meio das emoções. O ACORDE também vem da capacidade de harmonizar, daí o seu emprego na música para indicar o agregado sonoro. E o verbo ACORDAR? Também vem de "coração": é agir prudentemente com o coração, mas igualmente pôr em atividade com o coração, portanto significa estar presente, desperto, pronto para mais um dia.
Nós costumamos dizer que RECORDAR é viver. É verdade. Recordar é trazer uma lembrança para o presente... com o coração. Só quem é vivo pode recordar com o coração que bate no peito de saudades...
E quanto a quem sabe tudo? Bem, quem sabe tudo, sabe DE COR!, de coração. O que nos emociona torna-se inesquecível. E por isso o ensino deveria apaixonar, envolver, cativar.
Encerro esta listinha com o adjetivo CORDIAL, ao qual o escritor Antonio Callado reservou especial atenção no irônico conto intitulado "O homem cordial". Cito um trecho de impressionante atualidade:
"Professor de História e sociólogo, Jacinto tinha estudado a formação do povo brasileiro numa série de monografias elegantes e cujo êxito entre a intelligentsia irritara bastante os meios acadêmicos especializados. Não que o criticassem abertamente. Mas faziam circular o que consideravam 'O colunista social da História do Brasil'. Sem lhes prestar atenção, Jacinto, quando planejou o seu grande livro sobre os brasileiros, em nada menos de três volumes, resolveu dar à obra inteira o título de O homem cordial. A expressão, criada por Ribeiro Couto e fixada por Sérgio Buarque de Hollanda, lhe parecia perfeita para descrever a contribuição que o povo brasileiro se preparava para prestar à História em geral. Circunstâncias várias haviam criado tão imperativamente no Brasil o tipo do homem cordial que estávamos a caminho de ser o primeiro povo a construir um país por meios não-violentos: o primeiro país racional".
Nada como uma boa ironia para desmascarar a CORDIALIDADE, este sentimento que arrasta emoções. Callado escreveu o conto em 1967. Mas parece ter sido publicado esta manhã.
Hoje quero falar da família da palavra "coração", por isso usei o título em latim, que significa exatamanete isso: "do fundo do coração". Vamos, então, recuperar alguns sentidos lá do fundo do baú?
Que tal começar com MISERICÓRDIA? A palavra possui a raiz miseri-, que também está presente na palavra "miséria", e que significa suscitar piedade. A isso se soma o elemento -CORDIA, do latim "cor, cordis", ou seja, "coração". Sentir misericórdia é ter piedade com o coração.
Para os latinos, o coração era o centro das qualidades humanas. Por isso, a CORAGEM também vem do coração. A CONCÓRDIA e a DISCÓRDIA são a harmonia ou a desarmonia mediadas pelo coração, por meio das emoções. O ACORDE também vem da capacidade de harmonizar, daí o seu emprego na música para indicar o agregado sonoro. E o verbo ACORDAR? Também vem de "coração": é agir prudentemente com o coração, mas igualmente pôr em atividade com o coração, portanto significa estar presente, desperto, pronto para mais um dia.
Nós costumamos dizer que RECORDAR é viver. É verdade. Recordar é trazer uma lembrança para o presente... com o coração. Só quem é vivo pode recordar com o coração que bate no peito de saudades...
E quanto a quem sabe tudo? Bem, quem sabe tudo, sabe DE COR!, de coração. O que nos emociona torna-se inesquecível. E por isso o ensino deveria apaixonar, envolver, cativar.
Encerro esta listinha com o adjetivo CORDIAL, ao qual o escritor Antonio Callado reservou especial atenção no irônico conto intitulado "O homem cordial". Cito um trecho de impressionante atualidade:
"Professor de História e sociólogo, Jacinto tinha estudado a formação do povo brasileiro numa série de monografias elegantes e cujo êxito entre a intelligentsia irritara bastante os meios acadêmicos especializados. Não que o criticassem abertamente. Mas faziam circular o que consideravam 'O colunista social da História do Brasil'. Sem lhes prestar atenção, Jacinto, quando planejou o seu grande livro sobre os brasileiros, em nada menos de três volumes, resolveu dar à obra inteira o título de O homem cordial. A expressão, criada por Ribeiro Couto e fixada por Sérgio Buarque de Hollanda, lhe parecia perfeita para descrever a contribuição que o povo brasileiro se preparava para prestar à História em geral. Circunstâncias várias haviam criado tão imperativamente no Brasil o tipo do homem cordial que estávamos a caminho de ser o primeiro povo a construir um país por meios não-violentos: o primeiro país racional".
Nada como uma boa ironia para desmascarar a CORDIALIDADE, este sentimento que arrasta emoções. Callado escreveu o conto em 1967. Mas parece ter sido publicado esta manhã.
Maravilhoso.
ResponderExcluirObrigada, Ezequiel.
ExcluirA etimologia sempre me fascinou. Todas às vezes paro para ler artigos sobre ela. As palavras colocadas por você nesse texto tem curiosidades. Além disso, amplia a compreensão das palavras e da própria vida.
ResponderExcluirMuito obrigada pelas palavras generosas.
ResponderExcluir