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A revolução francesa contra o circunflexo

Banido. Adieu, caro circunflexo.
Pois é, é a França entrando na onda da reforma ortográfica. Dizem que para além dos Pirineus a briga entre defensores do circunflexo e os seus opositores está tão aguerrida quanto a batalha pelo nosso acordo ortográfico.
A novidade é esta: o uso do circunflexo não será mais obrigatório na língua francesa.
Mais ou menos como acontece no Brasil, onde muitas pessoas escrevem mal, mas os temas ligados ao português desencadeiam ódios e inimizades, da mesma forma, na França, a língua é tema sério, defendido pelo Estado, um patrimônio nacional. E as mudanças no idioma devem passar pelo diário oficial, como o nosso acordo ortográfico.
Aqui uma das charges sobre o tema

Novamente, o que está por trás da polêmica é o valor da língua como patrimônio cultural e como vetor de comunicação. Os que acusam a reforma dizem que a simplificação dá aval à superficialidade. Os defensores afirmam que a discussão sobre a complexidade da língua francesa, que cria dificuldades para a sua difusão no mundo, está em curso há mais de vinte anos e conta com o apoio da Academia Francesa.
E todo esse alvoroço em que números se traduz? Trata-se de cerca de 2400 palavras que perdem o acento, de mais ou menos 400 palavras de escrita incerta que são regulamentadas e da abolição do hífen em algumas palavras. Alguma semelhança com o acordo da língua portuguesa? Pois é, o mundo é uma ilha.
A perda do circunflexo no francês cria novas polissemias, semelhantes à que ocorre com a nova ortografia unificada da palavra "para" (verbo/preposição). Os italianos, que não possuem esse problema, comentaram que na sua língua conta-se com a habilidade do leitor para interpretar pelo contexto o que a ortografia não prescreve. Usam o bom senso como aliado.
De todo modo, convém lembrar que a língua não possui donos, embora possua falantes e escritores de reputação, que exercem o papel de formadores de opinião. No curso natural das línguas, as mudanças acontecem continuamente e cabe aos falantes mais renomados colocar vetos ou dar aval às transformações. Uma novidade é tratada inicialmente como "licença poética" enquanto é considerada erro para os comuns mortais. Quando a novidade é absorvida, o termo entra ou sai da língua sem maiores discussões.
Tivemos exemplo disso com a palavra "estória". Na década de 70 do século passado, o vocábulo era muito discutido, na onda das teorias estruturalistas que introduziam novos termos para distinguir narrativas, mas também graças a escritores que usavam a palavra (não podemos esquecer o Guimarães Rosa e seus neologismos arcaístas). De repente, a onda passou. Há dicionários que sugerem o uso do termo "história" em todos os contextos, confiando que o leitor saberá fazer as distinções convenientes de acordo com cada caso.
Ao contrário, quando o Estado toma a iniciativa de propor mudanças na língua, em geral o resultado é o que vimos com o nosso acordo ou o que está acontecendo agora na França.
É que guardião não deveria ser mestre-de-cerimônia. Melhor seria que deixasse a festa correr e os falantes falarem, intervindo apenas para conter os mais exaltados.
A língua é um fenômeno natural: muda sem pedir licença e cresce sem pedir opinião. Qualquer tentativa externa de cristalizá-la num passado ideal ou de acelerar o seu ritmo para antecipar o futuro acaba em briga. Mas é preciso que todos saibam: as mudanças não assassinam a etimologia, como alguns costumam afirmar categoricamente, e as mudanças por decreto não facilitam a vida dos falantes da língua, que, em geral, recebem esse tipo de novidade como um presente de grego e acham que aquilo que é feito para simplificar, no fim das contas, acaba apenas complicando a vida.

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