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A OBSESSÃO DOS OBJETIVOS

O texto de hoje deveria falar sobre uma das obsessões das chamadas "boas escolas": o cumprimento do programa. Porém, ao refletir um pouco mais, percebi que essa obsessão é só a primeira de outras obsessões análogas, ou talvez seja a fase propedêutica de uma obsessão que nos acompanha no trabalho, nas relações sociais, que espelha o nosso modo de estar no mundo.

Na escola, o programa parece ter um papel central. Então, os alunos não são levados a exprimir os seus talentos, a explorar a sua criatividade, a fazer descobertas espontâneas (que são o verdadeiro motor das revoluções científicas, embora seja validíssima e importante a pesquisa cotidiana com método e rigor). Os alunos são levados a cumprir o programa. E quanto mais capaz de se adaptar ao programa, mais o aluno é considerado exemplar. Um exemplo mundial desse tipo de padronização que as recentes gerações estão sofrendo? O exame PISA, aplicado em vários países, inclusive no Brasil. Eu não sou contra o PISA, seria boba se criticasse a sua validade, mas o PISA é bastante limitado para avaliar o potencial das pessoas, porque o PISA mede apenas o resultado. Daí vão dizer: claro que valoriza a pessoa, há uma minuciosa avaliação das condições sociais e educacionais dos alunos. Sim, mas apenas para classificá-los, não para valorizar o incrível potencial de cada um.

Cumprir o programa é necessário para que haja patamares mínimos a ser alcançados por todos, mas não deve ser a primeira prioridade da escola. A prioridade da escola deve ser formar a pessoa: cuidar do seu crescimento, orientar, estimular a sua curiosidade, apoiá-la nas dificuldades, valorizar a colaboração, promover o sentimento de pertença, encorajar a ética, favorecer a resolução de problemas, incentivá-la a ter senso prático, ajudá-la a conhecer os limites do corpo, explorar as emoções. A escola deve cumprir o programa, estimulando todas aquelas esferas que fazem as pessoas crescerem não apenas com conhecimento, mas com capacidade de manejar criticamente o conhecimento adquirido. Do contrário, criamos pessoas cujo conhecimento possui prazo de validade determinado, que correm o risco constante de serem descartadas, porque o conhecimento formal que tiveram é superado por novas descobertas e elas não foram treinadas para aprenderem a aprender sozinhas.
A escola que apenas cumpre o programa ajuda a criar pessoas muito preparadas para exames e concursos, mas muito frágeis e despreparadas para administrar pessoas. Geralmente, são pessoas rápidas, com um enorme número de informações e fórmulas na cabeça, mas bastante vulneráveis diante de situações reais, que comprometam as suas emoções, que coloquem em xeque ou duvidem das suas capacidades. Esse tipo de escola forma pessoas preparadas para competições, para a concorrência, forma recursos humanos perfeitos para um mercado de trabalho competitivo e que está sempre pronto a descartar o velho e ultrapassado e substituí-lo por uma novidade (que se trate de um objecto ou de um "recurso humano"). Esse tipo de formação tem por efeito colateral a coisificação da pessoa.

Em geral, a formação que coloca o programa como prioridade é chamada de "meritocrática". A pessoa é avaliada por seus méritos. As classificações feitas por órgãos independentes quantificam, como no caso do PISA, o mérito, que depois é usado como parâmetro para estabelecer o melhor e o pior. Nada de errado na classificação, o que está errado é fazer disso a prioridade número um.
Esses dias eu comentei isso em um post na minha página no Facebook: este ano eu gostaria de ver menos meritocracia e competição, e mais compromisso e colaboração. Porque o mérito é resultado de um juízo alheio e nos acostuma a agir para obter a aprovação do outro; o compromisso é uma iniciativa que precisa nos mobilizar pessoalmente com o outro e nos força a considerá-lo nas nossas escolhas.

Todo esse percurso comporta, obviamente, um efeito na vida profissional. Hoje é muito comum lermos artigos que refletem sobre o valor dos recursos humanos no sucesso de uma empresa; sobre a importância de investir em recursos humanos. A pessoa passou a ser chamada de "recurso". Mas o que queremos dizer com isso exatamente? A maioria das empresas brasileiras tem alta rotatividade de pessoal, há, inclusive, funcionários que pautam suas carreiras na mudança, pois mudar é crescer profissionalmente. Há empresas que toleram uma relação longa de trabalho com seus funcionários, mas a uma certa altura consideram os antigos colaboradores uma peça intocável de museu: bons, uma garantia, mas pouco úteis. Às vezes encontramos esses preciosos colaboradores nas oficinas, no máximo supervisionando os operários. E sem grandes perspectivas de crescimento no futuro.

Os recursos humanos começam a valer economicamente e a receber apreço social nas esferas dos altos cargos executivos, onde a liderança, a capacidade de formar grupos de trabalho e de motivar as pessoas são um diferencial para os resultados da empresa. Está bem, mas é muito pouco para uma sociedade que queira crescer (e espero que o Brasil seja um país que queira crescer realmente). Eu não sou empresária, nem quero ser; não sou governo, nem quero ser; não tenho poder, nem quero ter. Mas uma coisa é certa: um país rico deveria ficar satisfeito por ampliar as faixas de população com uma formação humana sólida, capazes de enfrentar e resolver desafios, com criatividade para inovar, crescer e criar riqueza. O que infelizmente vejo é uma competição míope, que estabelece classificações para poder descartar as pessoas. Ora bolas, não há lugar para aumentar riqueza nesse mundo? Ou achamos que a distribuição de renda significa empobrecimento de alguns para melhorar a vida dos outros? Honestamente, lamento constatar que a minha sensação é de que há muitas pessoas que seguem esta opção: espelham uma formação meritocrática e técnica limitada à aritmética simples. Se o outro ganha, significa que estou perdendo algo. Não chegaram à lógica da multiplicação e da descoberta de novos horizontes.

Fica, portanto, o convite à reflexão: o que estamos priorizando? Os objetivos ou as pessoas? O programa ou os alunos? Eu prefiro apostar nas pessoas não por formação, mas porque o potencial das pessoas é inestimável, enquanto o alcance do conhecimento que temos hoje é palpável e circunscrito. Provavelmente a minha aposta é arriscada: é muito mais fácil e cômodo seguir o programa e cumprir as metas. Mas todas as grandes inovações acalentaram seus sonhos em travesseiros de ideias que flutuavam no ar sem ter asas ou paraquedas: eram alimentadas pelo desejo, pela expectativa, pela fé no infinito, pela crença no potencial das pessoas.

Eu pensaria mais seriamente nisso e levaria menos a sério os slogans que nos condicionam. Distribuição não implica nessariamente tirar algo de alguém; ser competente não é apenas ser tecnicamente habilitado. Acho que ganharíamos muito: da escola às corporações; da família à sociedade.

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