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SOFISTA, EU?

Não invejo os filósofos. Se o ofício do professor de língua está sempre por cumprir-se, porque a língua é dinâmica, viva e desafiadora, a impressão que se tem é que os filósofos são eternos incompreendidos, sem um lugar de destaque nos currículos escolares, com uma babagem profissional pouco atrativa para a lógica do mercado.
Mentira: eu invejo os filósofos, e como! Invejo aquela capacidade de desarmar as falácias, de mostrar com clareza que as premissas não justificam as conclusões, de explicar esse mundo incoerente. Mas faço o que posso: confesso sem falsa modéstia que sou craque nas regrinhas básicas de uma boa dissertação. Na teoria é o seguinte: introdução, que apresenta o tema a ser tratado e as eventuais posições contraditórias a respeito dele; dois parágrafos descrevendo as motivações para a defesa das posições opostas entre si; uma conclusão que sintetiza os argumentos expostos e que, quando admissível, evidencia a posição fundamentada do autor.
Vem-me à mente um exemplo magistral. O histórico comercial da Folha de São Paulo, a peça “Hitler”, de Nizan Guanaes. A imagem desfocada começava por elencar uma série de características do personagem: “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo o número de desempregados caiu de seis milhões para novecentas mil pessoas. Este homem fez o produto interno bruto crescer cento e dois por cento e a renda per capita dobrar; aumentou o lucro das empresas de cento e setenta e cinco milhões para cinco bilhões de marcos; e reduziu a hiperinflação a um máximo de vinte e cinco por cento ao ano. Este homem adorava música e pintura e, quando jovem, imaginava seguir a carreira artística”. A este ponto o vídeo revela a imagem de Hitler e a narração continua: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso, é preciso tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe. Folha de São Paulo: o jornal que mais se compra e o que nunca se vende”. Na realidade não se trata de um sofisma completo, pois depois de listar as “qualidades” do personagem, a imagem revelada dá uma boa margem para que o espectador perceba sozinho que estava sendo induzido a uma falsa conclusão. Mas para evitar qualquer dúvida explica, didaticamente.
A questão é que na vida real não existem sofismas tão evidentes, nem coerência estável. As pessoas são simultaneamente coerentes para certas coisas e incoerentes para outras: e nos acostumamos tanto a esse mecanismo que de repente passa por ecletismo ou relativismo o que não é mais que uma obviedade óbvia: é incoerência pura e simples.
Ontem, aqui na Itália, um famoso jornalista colocou um ponto final em sua carreira na rede pública de televisão. Na minha opinião, foi muito demagógico quando disse estar disposto a retornar à empresa por 1 euro por programa, mas, justamente porque sei que estão dentro do limite do humano as incoerências, não posso deixar de mencionar um conceito complicado que exprimiu, mas que compartilho: “La vostra visione è che i ricchi devono fare la carità ai poveri. Per me è che la dignità del lavoro è condizione di libertà: e quando si attaccano quelli come me che da figli di macchinisti sono arrivati dove sono si impedisce a persone come mio padre di avere un sogno” (A visão de vocês é que os ricos devem fazer a caridade aos pobres. Para mim, ao contrário, a dignidade do trabalho é condição de liberdade: e quando se atacam pessoas como eu, que sendo filhos de maquinistas chegaram onde estão, impede-se a pessoas como meu pai terem um sonho).
A construção do texto poderia ser muito mais recheada de elementos para ficar evidente que o jornalista referia-se a uma concepção de mundo de estagnada em oposição a um sonho de mudança que se projeta para o futuro (os pais de hoje como os pais de ontem). O jogo acontece no plano sintático e semântico.
O que isso tem a ver comigo? É que sou mãe e sou, a meu modo, filha de maquinista. Nessa história, tento não ser incoerente e nem sofista. Eu sou uma idealista sem remédio, é isso. E sou professora de língua. Percebo que a incoerência me circunda. No fundo, não precisa ser filósofo para entender que a vida é mais complicada do que parece. Basta dominar a estrutura da dissertação.

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