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Mostrando postagens de março, 2012

PALAVRAS QUE CONTAMINAM

Os professores sabem bem disso (mas às vezes esquecem): o seu padrão de língua é contagiante (ou contaminante). Eu procuro ficar atenta ao meu modo de falar, ao meu sotaque, para não contagiar demais os alunos com meu “gislainês porto-alegrense”. Isso não evita que escape um “de manhã” (pronunciando como se escreve, à moda gaúcha) e chamando a atenção dos estudantes, que perguntam: “mas você não disse que “de” se pronuncia “di”?” GE-RAL-MEN-TE, sim. NO PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL! O fato é que nossos ouvidos nativos estão acostumados às várias possíveis pronúncias. Temos vários modos para pronunciar as sílabas compostas com as consoantes “s”, “d”, “t”, “r”. As vogais também mudam muito de acordo com a posição na palavra e com o falante. Algumas vogais ditongam onde não há ditongo, outras se nasalizam onde não há nasalização. E tudo isso não é um fator de instabilidade da língua, mas uma expressão da nossa enorme diversidade cultural. Estamos acostumados às nossas diferenças inte

TESTAMENTO

Quando uma língua morre, o seu legado é incorporado ao patrimônio dos idiomas descendentes. Dito em palavras pobres, o trabalho da filologia é ir buscar a herança que adquirimos e que rendem frutos nas línguas modernas. Descobrimos, assim, uma rede de relações que nos liga à panínsula itálica, à Magna Grécia e chega aos territórios indianos, onde ainda hoje o sânscrito é usado em certos âmbitos. Encontramos ainda elementos da língua que afundam raízes na África, no Oriente Médio, sem falar das influências anglófonas que lançam seus tentáculos do hemisfério norte. O português tem parentes nos quatro cantos do mundo!         Isso é uma grande vantagem para quem quer aprender o português, pois poderá buscar na própria língua recursos para a compreender melhor a nossa. É também uma grande vantagem para o falante nativo que quer aprender uma língua estrangeira, pois encontrará na própria língua portuguesa elementos úteis para descobrir o novo idioma. E isso é ainda um grande sinal de vi

SER IMIGRANTE, TER UM FILHO MAMEIRO

Não costumo colocar no blog elementos da minha vida pessoal, nem quero dar uma de Piaget e fazer teoria usando meu filho como cobaia, mas desta vez abro uma exceção para mostrar algo que acontece toda hora em uma língua viva: nasce uma palavra. Ser a única estrangeira da família é uma questão que já não levanta mais polêmicas. A última discussão foi aberta pelo filho, que naturalmente tem o entusiasmo dos seus seis anos e não desiste nem diante do enésimo “não”. Estava desconsolado porque a mamãe fala bem italiano e continua afirmando que é brasileira, só brasileira. Então eu disse que a gente pode ser estrangeiro e falar bem uma língua estrangeira. E que em uma família as pessoas não são iguais. Na nossa família todo mundo é diferente e isso é muito interessante! Essas conversas acontecem geralmente durante o café da manhã, entre um biscoito e um sanduíche, eu falando português, o pai falando italiano, e o filho falando as duas línguas. Eu bato o pé com essa história de ser br

COM LÍNGUA E DENTES

Aos que costumam recordar que o brasileiro é um povo sorridente, recordo que mostrar os dentes é usar a mais arcaica das armas. Mas não de todo obsoleta. A idade do ferro e do bronze estão aí para demonstrar o nosso engenho e arte, mas só na Idade Média demos o salto de qualidade, com o emprego da pólvora para fins bélicos. Dali à bomba atômica foi, historicamente falando, um passo. Ah, mas o brasileiro é um povo pacífico! Nós não temos nada a ver com essa história feita de mortos e feridos. Os nossos compatriotas morrem todos em lenta agonia após longo desespero. Para os nossos moribundos temos o sorriso e a língua. Quantos recursos! Dos palavrões à ironia, da metáfora à hipocrisia. Em matéria de língua estamos entre os melhores. Ou piores. Somos campeões em expectativa de milagres. Os nossos ditos populares estão cheios de sabedoria pronta para o uso: “Se Deus quiser”, “vai com Deus”, “vai com fé”. Se isso não bastasse, temos a espera do milagre cotidiano, as promessas renova

O ÓBVIO ULULANTE, UMA PARÁBOLA PORNOGRÁFICA

De Nelson a Verônica, a linguagem cumpre uma parábola volumosa que se expande e se contrai, deixando o leitor à beira da deriva. É aí que sentimos a necessidade de encontrar uma paráfrase para o que não é verbalizado. O óbvio ululante O óbvio ululante é tão óbvio que chega a ser difícil explicá-lo com palavras. A sua constatação se exprime por um grunhido, é uma reação pré-lógica. A sua evidência materializa-se por uma interjeição, para dizer de outra forma. Lança mão da mais arcaica e visceral das classes de palavras, é um fracasso para quem acha que para tudo existe uma definição. Ah! Uh! Ih! Eh! Oh! É uma espécie de uivo admitido pelas severas normas gramaticais. A expressão de Nelson Rodrigues é fácil de entender até certo ponto: o óbvio ululante, na realidade, é algo que temos dificuldade para descrever analiticamente. É uma concentração de sentidos, uma espécie de bomba linguística pronta para explodir. E de vez em quando explode.   A Pornografia Está aí a Ve

OFÉLIA, PLATÃO E O CABRA-MACHO

Eu era criança e sofria a péssima influência das personagens populares da tevê. Uma delas era Ofélia, uma personagem cômica que terminava os seus esquetes dizendo: “eu só abro a boca quando tenho certeza!”. Obviamente a personagem preenchia o seu tempo no vídeo dizendo uma série de bobagens, ou de abobrinhas, como dizemos metaforicamente. A Ofélia era o anti-Platão por excelência: uma figura deletéria para quem está descobrindo o alcance da linguagem. A Ofélia era péssimo modelo para as meninas e para as mulheres. A Ofélia certamente divertia os ditadores. A ignorância faz rir, a dúvida faz preocupar, na visão de alguns. Mas a ignorância certamente não é algo ridículo, e as dúvidas deveriam ser estimulantes. Quem não tem dúvida é pouco humano. Quem duvida está sempre à procura de si mesmo e dos outros. Às vezes quero publicar uma série de coisas aqui no blog, coisas que vão ficando acumuladas no meu caderninho e que ainda não estão suficientemente sistematizadas para o meu nível